um recado na porta: fui ali gotejar, volto daqui a cem anos

Deixemos a filosofia por instantes. Apaguemos “as luzes”. Há questões de ordem poética que só podem erguer-se no escuro. Reparei nesta torneira que vertia uma quantidade mais ou menos constante de água. Fazia-o todos os dias por ser a única coisa que sabia fazer. Tivesse, ou não, à sua volta, gente em cujo estômago depositar-se, ela, a água, talvez por falta de sentido, corria continuamente pela torneira. Ocasionalmente, terá uma caprichosa mão cinzenta de dedos adelgaçados ateado um pequeno fogo junto à torneira, galvanizando a água que, provida instantaneamente de um sentido (talvez o tato…), desata a lançar-se em copiosa jactância sob pretexto de apagar o pequeno fogo. Acontece que este fogo, sabe-se lá por que quimera, não era um fogo fátuo igual aos outros. Era extremamente perverso, pois quanto mais regado mais ardia, e mais, e cada vez mais alto! Irrompesse a água em torrente, jorro ou conta-gotas, o fogo acabava sempre por fazê-la evaporar, provido de um calor inaudito, inculcado por essa estranha combustão que parecia não ter fim. Todos conhecemos a lógica… A água evapora com o calor. O fogo produz calor. A água apaga o fogo. Nada disto lhes fazia sentido… e todas as vezes que a mão cinzenta e fria desligava a torneira, a água adormecia com a  memória dessa chama a arder rebelde e graciosamente, qual pira desenfreada.

Compreendendo esta disfunção, esta natureza subvertida, a água e o fogo passaram a regular-se na forma como se insinuavam um ao outro. Coexistiam, digamos. Criaram inclusive uma linguagem própria, ou acharam ter criado uma linguagem própria. A linguagem já existia na verdade. Era a poesia. Gostas de poesia? Eu acho que tens o bojo da poesia. Pode faltar-te o desespero, mas encontra-lo. Ás criaturas vivas, particularmente ás da espécie humana, o desespero é um vizinho com que facilmente nos cruzamos, não achas? Queres que continue? Sim, continua.

No êxtase dessa linguagem que achavam que criavam, a água e o fogo urdiram uma nova configuração para a harmonia dos quatro elementos. Por forma a confundirem a terra e o ar trocavam de roupa um com o outro. Consegues imaginar? A água a arder truculenta, de baixo para cima, queimando tudo à sua volta, enquanto o fogo percorre delicadamente as paredes interinas da torneira fazendo-se despejar em fio… É claro que tudo isto soa a desencontro, a coisa passageira, a noite que acaba demasiado cedo. Tens lume? Posso acender-te o cigarro. Se fizeres questão…

De forma sub-reptícia, volta a surgir a tal mão delicada, de unhas compridas, que torce abruptamente a torneira quase a ponto de fechá-la, mas não a fecha!, deixa-a deliberadamente a gotejar. Cabe mais paciência no verbo gotejar do que em todas as horas que passei à tua espera. Entre o silêncio que vai de uma gota para a outra consigo ouvir o barulho do fogo. Já ouviste o barulho do fogo? Acreditas nisso? Acho que devias queimar qualquer coisa. Não estou a incitar que incendeies uma mata. Uma coisa pequenina. Um papel. Devias queimar um papel, tentar ouvir o barulho do fogo, e quando já não ouvires mais nada escreves um poema. Parece-me um exercício bastante primitivo. Quem és tu? Não sou ninguém. Quando muito sou o tipo que inventou a água e o fogo, e não quero com isto parecer pretensioso até porque correu mal. Acabei por imitar a malograda invenção de deus. Criei a água antes do fogo. Toda a gente que compreende os mistérios da metafísica e se livrou das patranhas da espiritualidade de bolso sabe que o primeiro erro de deus foi ter inventado a água antes do fogo. Resta-nos então a mão cinzenta, já que eu não sou ninguém e deus se espalhou ao comprido logo no segundo versículo do livro de génesis.

Saberás certamente – e melhor que eu – a quem pertence esta mão simultaneamente arrebatadora e diáfana que abre e fecha torneiras à mercê da sua vilania. Esta mão, se incendiasse uma folha de papel, se escrevesse o poema do fogo, assiná-lo-ia com um nome que é igual ao teu. Assim sendo deixa-me apertá-la. Gostaria de poder cumprimentar-te, dizer a única coisa que me apraz dizer-te ao cabo destes meses: prazer em conhecer-te.

 

 

 

um recado na porta: fui ali gotejar, volto daqui a cem anos

Deixe um comentário